Numa daquelas frases inesquecíveis que cunhou,
Paulo de Tarso escreve: «quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor
12,10). E a nossa pergunta vem imediata: “que homem enigmático é este que
revolve a ordem esperada das coisas, elogiando a fragilidade em vez da força?”.
A verdade é que quem pretenda tornar-se leitor de Paulo tem de adequar o ouvido
e o coração a uma linguagem paradoxal, que nos desconcerta, nos comove e nos
forma. A gramática que ele utiliza (isto é, o seu modo de pensar e de dizer)
estilhaça as convenções. A tradição judaica olhou para a pregação dele com
suspeita e escândalo. Os gregos e os romanos, habituados à sofisticação do
pensamento e ao poder da retórica, menosprezaram o seu discurso que lhes
parecia uma loucura. E, mesmo hoje, passados dois mil anos do seu nascimento, o
seu discurso não deixa de ressoar profético e desafiador. (...)
Esse enigma chamado Paulo
Um consenso muito amplo, que reúne as mais
antigas tradições cristãs e os recentes dados das ciências hermenêuticas e
históricas, afirma claramente que as Cartas de Paulo são os primeiros escritos
cristãos que chegaram até nós. Esperar-se-ia que a nossa cultura, que vibra com
a arqueologia das origens e o retorno às fontes, nos tivesse impelido para uma
apropriação apaixonada e competente desse conjunto de textos fundamentais da
identidade crente. Há que reconhecer, porém, que o grande Paulo permanece um
autor desconhecido, mal amado e distante, mesmo para a maioria dos cristãos.
O uso litúrgico aproxima-nos, evidentemente, dos
seus textos, lidos e relidos ao longo do ano. Mas a verdade é que, no contexto
litúrgico, leem-se trechos selecionados ou sublinham-se frases teológicas,
demasiado densas para o desbravar, necessariamente contido, de uma celebração.
E, claro, os detalhes concretos que conferem unidade a cada carta são
frequentemente deixados de parte. Como dizia o escritor Oscar Wilde, acerca dos
limites do nosso conhecimento das Escrituras, «ouvimos lê-las demasiadas vezes,
e mal demais, e toda a repetição é antiespiritual». Mas também é verdade que
permanece inquebrável e sempre atual a certeza de que a vitalidade da Igreja
não se constrói sem o recurso ao pensamento de Paulo. Tornou-se uma espécie de
slogan dizer que “Sempre que a Igreja é relevante, ela é Paulina”, e há aí
muito de razão. Basta pensar na fecunda redescoberta, cheia de consequências,
que a Teologia fez de São Paulo no século XX e que deixou uma marca decisiva no
Concílio Vaticano II. Por isso, mesmo se Paulo não é ainda conhecido de maneira
sistemática pelos cristãos, a verdade é que as suas palavras e imagens dão-nos
já o melhor retrato daquilo que é o mistério da Igreja e da própria existência
cristã.
A reativação dos escritos de Paulo
Para chegar a Paulo é preciso atravessar uma
floresta de ideias-feitas e preconceitos. Paulo é, como hoje se diz, um autor
com “má imprensa”. É corrente ouvir que ele é um legalista, que perpetuou
modelos patriarcais que desvalorizavam as mulheres, que tem uma fobia às
questões do corpo e da sexualidade, que é um conservador em termos
sociais, etc, etc. Já no séc. XIX, Ernest Renan escrevia num best-seller sobre
Jesus: «O verdadeiro cristianismo, aquele que perdurará para sempre, vem dos
Evangelhos e não das 13 cartas de Paulo. Paulo é um perigo, um escolho… Paulo é
a causa dos principais defeitos da teologia cristã». E essa opinião deixou
sementes. Muitas vezes se vê opor-se a linguagem de Jesus, parabólica e aberta,
ao discurso teológico e pretensamente estreito de Paulo, num conflito de
interpretações superficial e descabido.
Mas também se dá um facto paradoxal:
multiplicam-se hoje os ensaios e leituras sobre Paulo e as suas Cartas, por
parte de importantes nomes do pensamento contemporâneo. Se é verdade que, de
Santo Agostinho a Lutero, de Karl Barth ao nosso Teixeira de Pascoaes, na
teologia, na filosofia, nas expressões iconográficas ou na literatura, a pessoa
e o pensamento de Paulo nunca deixaram de ser referenciais, também é verdade a
surpreendente efervescência do panorama atual. O filósofo Alain Badiou
publicou, no início dos anos 90, uma reflexão entusiasta sobre a figura de
Paulo a que intitulou “São Paulo. A fundação do Universalismo”. A
universalidade que Paulo prega não vem do que é já inerente e consubstancial ao
indivíduo (a sua pertença a uma família, a una nação, a uma língua… traços que
são necessariamente particularistas), mas de um Evento. O que produz a verdade
sobre o homem e sobre todos os homens é agora um Evento e uma Proclamação que
contrastam com a multiplicidade dos particularismos: a Morte e a Ressurreição
de Jesus. A verdadeira universalidade constrói-se no compromisso com esse
acontecimento que para Paulo é a chave de toda a história.
Em 1998, o filósofo italiano Giorgio Agamben
orientou um seminário no Colégio internacional de filosofia, em Paris, onde
escolheu comentar a Carta de São Paulo aos Romanos, porque, segundo ele, a hora
da plena legibilidade dos escritos de Paulo finalmente chegou. A tese de
Agamben é que, para Paulo, Cristo, sendo a finalidade da Lei, também representa
o seu fim (término). A consequência é que o tempo messiânico pode deslocar os
referentes do mundo: o que até aqui era a norma ou o quadro social deixa de
valer só por si. O tempo messiânico é um estado de exceção que permite a
transfiguração do mundo, a sua revisão.
Ainda mais recentemente, o filósofo esloveno
Slavoj Žižek tem tornado a Paulo.
Ele classifica o tempo atual como de “Crença suspensa”, pois a fé passou a ser vista como um segredo pessoal e quase obsceno, do qual é incorreto falar. E contudo, escreve Žižek, a pergunta corriqueira, “és ou não um verdadeiro crente?”, tornou-se «talvez mais do que nunca» uma questão fundamental. Fascina-o em Paulo o seguinte: «Quando lemos as epístolas de Paulo, não podemos deixar de notar a sua indiferença relativamente a Jesus como pessoa histórica. Paulo desinteressa-se quase por completo dos atos particulares de Jesus, dos seus ensinamentos, das suas parábolas… Nos seus escritos, Paulo nunca se situa no campo da hermenêutica, nunca busca o sentido profundo desta ou daquela parábola ou ato de Jesus. O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mortos». A Paulo, diz o filósofo, interessa o cristianismo como rutura, processo, tomada de posição.
Ele classifica o tempo atual como de “Crença suspensa”, pois a fé passou a ser vista como um segredo pessoal e quase obsceno, do qual é incorreto falar. E contudo, escreve Žižek, a pergunta corriqueira, “és ou não um verdadeiro crente?”, tornou-se «talvez mais do que nunca» uma questão fundamental. Fascina-o em Paulo o seguinte: «Quando lemos as epístolas de Paulo, não podemos deixar de notar a sua indiferença relativamente a Jesus como pessoa histórica. Paulo desinteressa-se quase por completo dos atos particulares de Jesus, dos seus ensinamentos, das suas parábolas… Nos seus escritos, Paulo nunca se situa no campo da hermenêutica, nunca busca o sentido profundo desta ou daquela parábola ou ato de Jesus. O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mortos». A Paulo, diz o filósofo, interessa o cristianismo como rutura, processo, tomada de posição.
Ainda relativamente a Paulo, um elemento curioso
é o interesse que tem suscitado entre estudiosos judaicos. Jacob Taubes, que se
define como um “paulino não-cristão”, talvez seja o autor da obra mais
importante. Este rabino e filósofo alemão defende que Paulo operou uma revolucionária
alteração dos valores em que o nosso mundo se funda. E poderíamos ainda citar,
no universo judaico, as obras de Daniel Boyarin ou S. Ben-Chorin.
Uma coisa parece certa: passados dois mil anos do
seu nascimento, Paulo confirma e adquire uma importância e um estatuto cultural
do maior relevo. Este interesse deve representar para os cristãos uma
responsabilidade, no sentido de não deixarem de frequentar Paulo e de se
confrontar com ele.
Quem é Paulo de Tarso?
Não há, nem de longe, outra figura do cristianismo
primitivo sobre quem saibamos tanto. E se compararmos com grande parte dos
personagens que a Antiguidade consagrou, pensemos em Hesíodo, Homero ou
Sócrates, o que podemos concluir é que a biografia do Apóstolo está muito
melhor sustentada. Paulo é o homem das encruzilhadas. Viveu e operou em
diferentes mundos, línguas e culturas. Desenvolveu uma presença, mais
esporádica ou mais continuada, em centros urbanos importantes e distantes como
Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Filipos, Corinto e Atenas na Grécia,
culminando a sua obra em Roma, Itália. Um verdadeiro corre-mundos da Época
Antiga! Em todos eles testemunhou, de maneira vibrante, a universalidade da
salvação inaugurada por Cristo.
As fontes para a reconstrução biográfica de Paulo
permanecem essencialmente duas: as cartas paulinas e os Atos dos Apóstolos. As
Cartas de Paulo têm uma declarada finalidade pastoral, mas é verdade que os
traços autobiográficos abundam, pois o Apóstolo compromete-se existencialmente
com a sua pregação. Alguns preciosos versículos da 1Tes (1,1-10); o capítulo 16
da 1 Coríntios; o arranque da 2 Cor, bem como o núcleo constituído pelos
capítulos 10 a 13; os capítulos 1 e 2 da Carta aos Gálatas; os capítulos 15 e
16 da importante Epístola aos Romanos; e alguns trechos de Filipenses: é
verdade que este conjunto de passagens não bastaria, por si só, para narrar-nos
a vida de Paulo, mas transmitem-nos em primeira pessoa a consciência apaixonada
que ele tem de si próprio e da sua missão.
Que ficamos a saber da vida de Paulo por aí? Que
Paulo pertence à tribo de Benjamim (Filp 3,5; Rom 11,1); foi Fariseu (Filp
3,5); viu a Cristo; considera-se a última testemunha da ressurreição (1Cor
15,8); Pouco depois da sua conversão, Paulo prega na Arábia (Gal 1,17), e sobe
a Jerusalém somente três anos após se ter tornado discípulo de Jesus. Até lá
ele não conhecido das Igrejas da Judeia. Reencontra Pedro e Tiago em Jerusalém
(Gal 1,18-24). Sobe uma segunda vez a Jerusalém e reencontra de novo Pedro e
Tiago, assim como João (Gal 2,1-10). Paulo estreita os laços com a comunidade
de Jerusalém organizando em favor dela uma coleta (2 Cor 8,9). E manifesta a
intenção de passar por Roma para se dirigir a Espanha.
Sobre o seu fim, a morte em Roma, temos algumas
referências esparsas da Antiguidade cristã. Eusébio cita o testemunho do bispo
de Corinto, segundo o qual Pedro e Paulo teriam sido martirizados. Tertuliano
indica que a execução foi semelhante à de João Batista, ou seja, decapitação. O
ano mais provável parece ser o de 67, pela simples razão de que essa data
coincide com o fim da perseguição de Nero, mas pode ter acontecido entre 64 e 67.
Reconhecer Paulo
Esta evolução é ainda mais interessante – e é
certamente um fator que confere ao pensamento de Paulo um potencial de sedução
muito forte - se tivermos em conta que o mundo paulino tem um centro que
permanece imutável: a ressurreição de Jesus. «Se Cristo não ressuscitou a nossa
pregação é vazia, e vazia também é a vossa fé» (1 Cor 15,12). Um centro fixo
num pensamento móvel – assim se poderia descrever em grande parte o génio do
apóstolo que inaugura o cânone cristão.
Percorrendo a sua biografia e o seu pensamento
podemos definir Paulo com a com o adjetivo que os antigos gregos utilizavam
para descrever o sábio. O sábio é um methórios, “aquele que está sobre a
fronteira”. De facto, permanecendo judeu, ele foi também o cidadão de Roma e do
mundo, com todas as condições para efetuar uma das operações mais criativas,
geniais e complexas: a ação de tradução da mensagem cristã na cultura corrente
do seu tempo. Paulo situa-se na dependência do acontecimento pascal
protagonizado por Jesus de Nazareth e coloca-se, por inteiro, ao serviço do
anúncio da novidade cristã. Mas fá-lo numa língua nova, recorre a novos
conceitos e imagens, ousa o contacto com novos espaços. O cristianismo no tempo
de Jesus era sociologicamente uma realidade campesina. Com Paulo ganhou a
amplidão que o próprio Jesus prometera: «Ide, pois, fazei discípulos de todos
os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,19-20). Tornou-se
uma realidade urbana, cosmopolita, sem fronteiras.
E onde o anúncio do cristianismo chegava, exercia
o seu poder transformador. No mundo das cidades greco-romanas onde os homens
são desiguais por nascimento e onde os grupos sociais parecem separados por
fronteiras raramente ultrapassáveis, a teologia inclusiva do cristianismo
escreverá a diferença. O cristianismo podia oferecer a cada um uma nova
consciência de si e a solidariedade real e simbólica de uma pertença comum. O
Batismo, quer dizer, a decisão de colocar a sua existência sob a senhoria de
Cristo crucificado, pressupõe uma escolha pessoal e a aceitação de um novo
caminho (cf. 1Cor 7). Cada batizado reforça a sua singularidade por uma
participação pessoal no mistério de Cristo. Doravante, «não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em
Cristo Jesus» (Gal 3,28). E falar desta nova realidade é falar do que está no
cerne da experiência cristã.
José Tolentino Mendonça
In Além-Mar
Imagens: Ilda David' (Assírio & Alvim)
http://www.snpcultura.org/ja_lestes_sao_paulo.html
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