Na Quarta-feira [de Cinzas], os católicos começam um tempo de exercícios
espirituais a que chamam Quaresma. Começam-no de uma forma, no mínimo,
curiosa: com um dia de jejum (que voltam a replicar na Sexta-Feira
Santa). Ora, um dado muito objetivo é a urgência de as comunidades
católicas reencontrarem o sentido desta prática. Hoje é patente a
necessidade de ressignificar espiritualmente o jejum, e de fazê-lo numa
linguagem compreensível, mas sem dispensá-lo. Só um cristianismo
insípido pode liquidar o jejum como irrelevante ou achar que pode fazer
equivaler a privação do alimento à privação de qualquer bem ou gasto
supérfluo. O que está em causa no jejum é a possibilidade de nos
interrogarmos sobre algo mais fundo: aquilo que nos serve de alimento e a
voracidade sonâmbula com que vivemos. Pois, como lembrava José Augusto
Mourão, «há em nós um desejo de ser ou de viver que nenhum alimento do
mundo pode saciar. O que é desejado em nós não são tanto os objetos de
que parecia termos necessidade mas aquilo que subjaz ao fundo de que
vivemos, o dom da vida». É com isso precisamente que o jejum dialoga.
Nos seus traços bíblicos e cristãos, o jejum não é uma simples
desintoxicação da bulimia em que estamos mergulhados, mas um modo, ao
mesmo tempo simbólico e real, de exprimir que o verdadeiro alimento da
nossa vida é outro, está noutra parte. Desta forma, somos chamados a
tomar o jejum como lugar de um reencontro espiritual autêntico — e isto
através de uma aprendizagem da conversão. É na medida em que o crente
aprofunda o amor indefetível de Deus que poderá aceitar o risco e a
exigência de um compromisso assim vital. Na sua simbólica política (que
evidentemente tem, não o esqueçamos), o jejum é também uma contestação
declarada a uma cultura que identifica no consumo a sua promessa de
felicidade e que promove essa procura no modo egocêntrico mais básico. O
jejum é um posicionamento face aos tráficos de desejo que cada um traz
alojados dentro de si. A vida cristã é uma economia de resistência e de
combate. O jejum deve tornar-se um compromisso ativo em vista de uma
transformação das estruturas opressivas de um mundo que, por exemplo, na
sua organização atual patrocina o desfrutamento devorante das fontes do
planeta. O jejum, porém, só encontra a sua legibilidade quando nos
reaproxima dos outros, recolocando-nos a operar num horizonte
comunitário e relançando as nossas competências relacionais. É na medida
em que o crente solidamente ancora a sua prática na relação que poderá
aceder verdadeiramente à significação do jejum: renúncia à atitude
solipsista das várias tipologias de consumo em vista da sobriedade, da
condivisão, da solidariedade e do dom. O jejum tem de inspirar uma nova
qualidade e um novo estilo de relação, afastando-nos quer das práticas
predatórias e suas quotidianas insinuações, quer da indiferença
determinada pela busca obsidiante do proveito próprio. Lembra o monge
português Carlos Maria Antunes, num oportuníssimo livro agora publicado
(«Só o Pobre Se Faz Pão», Paulinas Editora, 2013): «O jejum deixa-nos
indefesos, confrontados com a nossa nudez, libertando-nos da tirania das
máscaras e expondo a pobreza radical que habita cada ser humano. Revela
que a nossa fome não é só de pão e que o nosso desejo mais profundo é
sempre desejo do outro. Ampliando o nosso espaço interior, transforma-se
numa forma singular de hospitalidade, que permite o acolhimento de si
próprio e do outro, na sua mais genuína originalidade e verdade».
José Tolentino Mendonça, padre e poeta
«Revista» («Expresso»), 2 de fevereiro de 2013
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